quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

#38 Reflexo

Os momentos sucedem-se uns aos outros e a mente humana vai catalogando-os em função das referências que possui e que derivam das experiências passadas. Fazendo com que a realidade seja uma constante revisitação a ocorrências de um passado que teima em sobreviver ao presente, mas que só no presente pode ser vivenciado. E por arrasto implica um futuro que não passa de um passado recauchutado. Isto será assim até que se possa despertar do torpor de dormência que o afasta do agora, que o ilude sobre aquilo que é, tal como é neste momento. 
Assim mergulhadas nesse torpor se encontravam a Daniela e a Sara, cada uma à sua maneira, em busca de uma boia de salvação que as resgate ao encontro da sua versão original. Uma versão livre de condicionalismos, e reminiscências de um passado que desejavam fosse diferente. Mas que no entanto sabiam, ser esse passado aquilo que as fizera chegar onde estavam no presente. Aquilo que cada uma, dentro do seu processo, tem feito enquanto descoberta pessoal, enquanto investimento no maior tesouro que cada ser humano possui, mas que poucos estão cientes desse tesouro e que é a vida.
A vida a mais preciosa das joias que alguma vez poderíamos imaginar ter, perceber a quantidade de condicionantes que são necessárias que ocorram para permitir que exista a vida, tal como a conhecemos e a capacidade de ter consciência de ser, essa vida a ser vivida. A vida a tomar consciência de si mesma. É este o propósito do ser humano. Viver a vida tal como ela é, não tendo que haver um ponto de partida e um ponto de chegada que desvie a atenção do essencial para o acessório. É a viagem pelo seu todo, momento a momento que é valioso e não apenas o local onde queremos chegar. São estes objetivos últimos que toldam a realização da perfeição do presente, pois ele é sempre perfeito como acontece, porque é o que acontece. 
Cada fragmento da essência, materializado num corpo humano e na mente que se ilude de o controlar, tal como deseja controlar os seus destinos em busca daquilo que pretende ser o melhor para si. Desaguando assim num conflito permanente entre aquilo que deseja que aconteça e aquilo que acontece de facto. Sendo este conflito a causa da ilusão de separação e sofrimento que recai sobre a humanidade como um todo, refletido nas suas diferentes unidades.
As condições para que se desperte do estado dormente vão sendo tecidas numa miríade de escolhas que se vão fazendo e que implicam sempre renunciar a todas as outras que seriam passíveis de ser tomadas e que não o são. Por vezes é aquilo que se renúncia que mais dor acarreta, ficando remorsos por não ter feito diferente do que se fez. E esses remorsos vão corroendo a atenção, sorvendo a energia toda até que se atinja um ponto de não retorno. 
O que advém desse ponto de não retorno pode implicar o fim da vida como a conhecemos ou então pode dar origem a uma entrega total, a um desistir da réstia de controle e simplesmente se abandonar ao que vier.
A Sara havia atingido esse ponto e tendo balançado entre essas duas escolhas, foi o ter conhecido o Ricardo que a fez desequilibrar a balança para a entrega total. Para ela este processo que estava em curso, representava uma derradeira oportunidade para dar significado à sua existência.
Seguindo as recomendações do Ricardo, ela permitia-se observar os pensamentos que adejavam na sua mente. Procurando libertar a sua atenção para os intervalos que ocorriam entre os pensamentos. E ainda que inicialmente não o conseguisse fazer, lentamente foi notando por breves instantes esse espaço que mediava os pensamentos. Com a prática dedicada, esses instantes foram sendo mais longos. Quando isso acontecia uma sensação de paz, de harmonia assomava à superfície e tudo ficava mais leve. Sendo depois quebrada pela voragem de novos pensamentos, mas agora essas pequenas brechas que se abriam na sua mente jamais poderiam ser tapadas.
A sua relação com o tempo vinha-se alterando, intercalando momentos em que tudo como que se arrastava, se engasgavam e uma sensação de aprisionamento surgia. Com outros momentos onde tudo fluía, o passar do tempo não se fazia notar e ai tudo tinha mais sentido, cada peça encontrava o seu lugar. Ela sabia que estava tudo na sua perceção, que nada mais havia para lá da forma como ela interpretava tudo o que ocorria; todas as ocorrências são neutras os filtros que usava para se relacionar com a realidade é que eram um reflexo seu.
Saboreando uma bela refeição, preparada por si, entregava-se ao deleite dos sabores, notando as texturas dos alimentos em contacto com a sua boca, dialogando com as suas papilas gustativas servindo-lhes prazer. 

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